Theodor W Adorno
[* Reproduzido de Gesammelte Schriften Vol. 20, T. I [Soziologische Schriften] Frankfurt: Surhkamp Verlag, 1986, p. 267-286. Traduzido por Francisco Rüdiger]
Os conceitos de liderança e ação
democrática estão tão profundamente envolvidos na dinâmica da
moderna sociedade de massa que seu sentido não pode mais ser
aceito como dado na presente situação. Em contraste com os
príncipes e senhores feudais, a idéia do líder emergiu com a
ascensão da democracia moderna. Relacionava-se então com a
eleição, pelos partidos políticos, daqueles a quem eles
delegavam a autoridade de falar e agir em seu favor e que, ao
mesmo tempo, supunham qualificado para guiar o homem comum
através da argumentação racional. Desde a famosa Soziologie
des Parteiwesens, de Robert Michel, que não é mais assim: a
ciência política demonstrou que essa concepção clássica,
rousseauniana, não correspondia mais à realidade. Através de
diversos processos, como o enorme crescimento numérico dos
partidos modernos, sua dependência a concentradíssimos
interesses disfarçados e, enfim, à sua própria
institucionalização, o verdadeiro funcionamento democrático da
liderança, até o ponto em que ele de fato foi alcançado na
realidade, havia desvanecido. Não obstante o fato de que em
decisões importantes a democracia de base, como oposição à
opinião pública oficial, vez por outra ainda mostre
surpreendente vitalidade, a interação entre partido e
liderança tornou-se mais e mais limitada a manifestações
abstratas da vontade da maioria através de votações e, os
mecanismos dessa últimas, em grande parte sujeitos ao controle
das lideranças estabelecidas. A liderança tornou-se
em si mesma cada vez mais rígida e autônoma, perdendo, na
grande maioria da vezes das vezes, contato com as pessoas.
Concomitantemente, o impacto da liderança sobre as massas deixou
de ser de todo racional, passando a revelar claramente alguns dos
traços autoritários, que sempre estão latentes onde o poder é
controlado por uns poucos. As figuras ocas e infladas de líderes
como Hitler e Mussolini, investidas de uma falso
"carisma", são as últimas beneficiárias dessas
mudanças societárias ocorridas dentro da estrutura de
liderança. Tratam-se de mudanças que também afetam
profundamente as próprias massas. Quando as pessoa sentem que
realmente não estão em condições de determinar seu próprio
destino, como aconteceu na Europa; quando se desiludem a
respeito da autenticidade e efetividade dos processos políticos
democráticos; então, elas são tentadas a entregar a
substância da autodeterminação democrática e arriscar sua
sorte com aqueles que eles ao menos consideram poderosos: seus
líderes. Freud (1) descreveu as organizações hierárquicas,
como exércitos e igrejas, em termos de mecanismos de
identificação e introjeção autoritários que podem se impor
sobre grande número de pessoas, sem exceção dos grupos cuja
essência é o anti-autoritarismo, como são, antes de mais nada,
os partidos políticos. Embora aparentemente distante agora, esse
perigo é a contrapartida dos procedimentos com os quais uma
liderança procura se autoperpetuar. A observação geralmente
feita de que, hoje, a democracia fomenta os movimentos e forças
anti-democráticas é um dos mais claros sinais de manifestação
desse perigo.
Em função disso, é preciso dar um sentido
mais concreto às idéias de democracia e liderança, se é para
prevenir sua transformação em meras palavras, quando não em
disfarces de situações totalmente opostas às indicadas por seu
significado. O conhecimento de que a maioria das pessoas
freqüentemente age de maneira cega e de acordo com a
vontade de figuras demagógicas ou instituições poderosas,
contrariando ao mesmo tempo os princípios básicos da democracia
e de seu próprio interesse racional, atravessa todos os tempos.
Apareceu muito tempo antes de Ibsen torná-la a tese de seu O
Inimigo do Povo; na realidade, desde que o problema da
oclocracia surgiu pela primeira vez na antiga Grécia. Aplicar a
idéia de democracia de maneira meramente formalista, aceitar a
vontade da maioria per se, sem considerar o conteúdo das
decisões democráticas, pode levar à completa perversão da
democracia e, derradeiramente, à sua abolição. Hoje mais do
que nunca, é função da liderança democrática tornar os seus
sujeitos, o povo, conscientes de seus próprios desejos e
necessidades contra as ideologias que são marteladas em suas
cabeças pelos inumeráveis canais de comunicação dos
interesses disfarçados. As pessoas precisam entender que
aqueles princípios democráticos, uma vez violados, impedem o
exercício de seus próprios direitos e podem faze-las passar de
sujeitos autodeterminados a objetos das mais obscuras manobras
políticas. Numa era como a nossa, quando o feitiço de uma
cultura de massas controladora do pensamento se tornou quase
universal, esse postulado, portador do melhor do senso comum,
parece utópico. Certamente seria idealismo ingênuo presumir que
uma coisa assim possa ser alcançada apenas através de meios
intelectuais. A consciência e a inconsciência das massas têm
sido condicionadas pelos poderes existentes em tal extensão que
não basta apenas "dar-lhes os fatos". Paralelamente,
porém, ocorre que o progresso tecnológico tornou as pessoas
tão "racionais", céticas, alertas e resistentes
contra todos os tipos de contrafação que não pode haver
dúvida a respeito da existência de fortes contratendências aos
penetrantes padrões ideológicos existentes em nosso ambiente
cultural. Acontece muitas vezes de as pessoas se
conservarem indiferentes mesmo diante da mais intensa pressão
propagandística, se estão em jogo questões importantes. O
esclarecimento democrático tem de se apoiar nessas
contratendências e essas, por sua vez, devem se basear em todos
os recursos do conhecimento científicos a nós disponíveis.
As tentativas nessa direção podem ter um
ponto de apoio profundo na própria idéia de liderança mas,
para tanto, seria preciso fazer um desmascaremento sem medo do
tipo de liderança promovido por toda parte pela moderna
sociedade de massa, na medida em que ele fortalece uma
transferência irracional ou identificação inconciliáveis com
a autonomia intelectual, núcleo do ideal democrático.
Outrossim, o esclarecimento democrático deve impor umas
exigências muito definidas à liderança democrática. Na
hipótese dela desejar construir tendências objetivas e
progressistas dentro da mente das massas, isso não pode
significar, sequer em imaginação, que ela venha a fazer uso
dessas tendências; que, sob o pretexto de favorecer metas
democráticas e através da exploração ardilosa de sua
mentalidade, ele deva manipular as massas. Ao invés de uma
escravização adicional, o que é preciso [agora] é a
emancipação da consciência. O verdadeiro líder democrático,
que é mais do que um mero expoente dos interesses políticos da
ideologia liberal, necessariamente teria de se abster de qualquer
especulação "psicotécnica", de qualquer tentativa
para influenciar as massas ou grupos de pessoas através de meios
irracionais. Sob nenhuma circunstância ele deve tratar os
sujeitos da ação política e social como meros objetos a quem
uma idéia é vendida, pois essa atitude geraria uma
inconsistência entre fins e meios que poderia não apenas
prejudicar toda a sinceridade da sua aproximação como
destruir suas convicções interiores. Pragmaticamente uma
tentativa como essa se esgotaria na habilidade daqueles que
pensam e agem apenas em termos de poder, que são amplamente
indiferentes à validade objetiva de uma idéia e que,
desembaraçados das "ilusões humanitárias",
subscrevem como um todo a atitude cínica de considerar os seres
humanos como matéria bruta passível de ser moldada à vontade.
Durante a crise da República de Weimar, por exemplo, o
Reichsbanner Schwarz-Rot-Gold, uma organização liberal
progressista bastante numerosa, tentou se contrapor ao esquema de
emprego racional de estímulos de propaganda irracional dos
nazistas introduzindo outros símbolos. Contra a Swastika,
eles criaram as três flechas. Contra o grito de guerra Heil
Hitler, o Frei Heil, mais tarde alterado para Freiheit.
O fato de que esses símbolos muito mal misturados da democracia
alemã não eram sequer conhecidos no país serve de evidencia
do seu completo fracasso. Foi fácil para a máquina de Gobbels
ridicularizá-los. Inconscientemente, as massas perceberam muito
bem que esse tipo de contrapropaganda era mera tentativa de
roubar uma folha do livro nazista; que, como tal, ela era
inferior e que, de certo modo, o próprio ato de emulação em
que se baseava era sinal de derrota.
Cremos que não é ousadia demais aplicar a
lição dessa experiência à nossa própria cena. A tarefa da
liderança democrática, até onde mostra preocupação com a
relação das massas com a democracia, não deveria ser fazer uma
propaganda melhor e mais abrangente mas se esforçar para superar
o espírito da propaganda através da adesão ao princípio da
verdade. Lutando contra Hitler, a liderança aliada acabou
reconhecendo esse princípio e fez frente à propaganda
doméstica alemã apenas com a exposição dos fatos. Este
procedimento não somente provou ser moralmente superior à
técnica dos cérebros da propaganda nazista como se mostrou
efetivo, ao ganhar a confiança da população alemã.
Reverter a esse princípio todavia envolve um
problema da mais alta seriedade. Sempre que afirmada
abstratamente, a postulação de sinceridade incondicional soa
com uma tentativa de apaziguamento que lembra a da inocência
infantil, uma idéia que costuma ser feita em pedaços pelos
expoentes da Realpolitik, acima de todos, pelo próprio
Hitler. Para conquistar o apoio das massas, reza sua
argumentação, há que se toma-las como elas são, e não como
se deseja que sejam. Noutras palavras, é preciso mexer com sua
psicologia: é inútil difundir a verdade objetiva sem uma
avaliação dos sujeitos a quem é direcionada. Considerando que
ela pode ultrapassar sua compreensão, pode ocorrer de ela jamais
chegar até eles e, assim, ser completamente ineficiente. De
acordo com o raciocínio de Hitler, a propaganda tem se ajustar
ao mais estúpido entre aqueles a quem ela se dirige; ela não
deve ser racional mas emocional. Trata-se de uma fórmula que
provou ser tão bem sucedida que evitá-la parece levar a uma
situação inviável. A própria eficácia da princípio de
verdade da propaganda de guerra aliada, argüir-se-ia nessa
linha, poderia ter sido produto de meras condições
psicológicas: a verdade só se tornou aceitável e sedutora
atendendo a uma necessidade que só surgiu depois de serem
quebrados o sistema de mentira total goebbelsiano e as promessas
de uma guerra curta e de proteção da terra natal contra
os ataques aéreos feita pelos nazistas. Por outro lado,
nenhuma uma análise comedida da cena americana poderia deixar de
constatar que a própria propaganda é fortemente libidinosa.
Numa cultura de negócios na qual a publicidade se tornou uma
instituição pública de dimensões assustadoras, as pessoas
realmente se encontram ligadas não apenas aos conteúdos mas
aos próprios mecanismos da propaganda. Por mais vicária ou
mesmo espúria que possa ser, a propaganda moderna é em si mesma
uma fonte de gratificação. A renúncia à propaganda requeriria
pois uma renúncia instintiva por parte das massas que a
ela estão expostas, e isso é algo que tem a ver não apenas com
a beleza de cozinha com que está associada "sua sopa
favorita" mas, em um sentido profundo mais efetivo e sutil,
à própria propaganda política. Os campeões da
propaganda fascista, por exemplo, lograram desenvolver um
ritual que, para seus aderentes, ocupa um lugar muito mais
amplo que qualquer programa político bem desenhado. Para o
observador superficial, a esfera política parece pois
destinada a ser monopolizada pelos ardilosos homens de
propaganda: a política é vista por um vasto número de pessoas
como um campo para iniciados, se não de politiqueiros e chefes
de máquinas partidárias. O problema é que quanto menos as
pessoas acreditam na integridade política, mais facilmente elas
podem cair nas mãos dos políticos que vociferam contra os
políticos. Enquanto o princípio de verdade e seus processos
intrinsecamente racionais exigem um certo esforço intelectual
que provavelmente não atrairá muitos amigos, a propaganda em
geral, e a fascista em particular, estão inteiramente adaptadas
à chamada linha de menor resistência.
O princípio da verdade continuará sendo,
portanto, uma afirmação escorregadia, a menos que seja
formulado mais concretamente. Nesse caso, as tarefas seriam duas.
Primeiro, seria preciso descobrir uma abordagem que não faça a
menor concessão àquelas aberrações que são quase
inevitáveis, sempre que as comunicações são adaptadas a seus
consumidores potenciais. Conjuntamente, ter-se-ia de passar pelas
barreiras da inércia, da resistência e dos padrões de
comportamento mental condicionados. Para os que lamentam a
imaturidade das massas tudo isso pode parecer uma empresa sem
esperança. Entretanto, o argumento segundo o qual as pessoas
têm de ser tomadas como de fato são é apenas uma meia-verdade;
ele passa por alto algo que ainda está muito vivo, o potencial
de autonomia e espontaneidade das massas. É impossível dizer se
o tipo de abordagem proposto aqui eventualmente terá sucesso, e
a razão por que ele jamais foi testado em larga escala deve ser
procurada no próprio sistema [social] dominante. A despeito
disso, é essencial que ele deva ser testado.
Como primeiro passo, as comunicações
deveriam se comprometer com a verdade e tentar se desenvolver no
sentido da superação dos fatores subjetivos que tornam a
verdade inaceitável. O estágio psicológico da
comunicação [da liderança democrática], não menos do que seu
conteúdo, deveria respeitar o princípio da verdade. Embora o
elemento irracional tenha de ser devidamente considerado, não
deve ser aceito como dado mas, antes, como algo que deve ser
atacado com e pelo esclarecimento. A integridade factual e
objetiva deveria ser combinada com o esforço para promover o
discernimento das disposições irracionais que dificultam o
julgamento racional e autônomo por parte das pessoas. A verdade
a ser difundida pela liderança democrática precisa ser
relacionada a certos fatos que costumam ser obscurecidos por
distorções arbitrárias e, em muitos casos, pelo próprio
espírito de nossa cultura. Seu objetivo é estimular a
auto-reflexão naqueles que desejamos ver livres das garras do
condicionamento todo-poderoso. Tratam-se de metas que se
justificam sobretudo se levarmos em conta que dificilmente pode
haver dúvida de que há uma interação íntima entre ambos os
fatores: as ilusões da ideologia anti-democrática e a ausência
de introspecção (devida em grande parte aos mecanismos de
defesa).
Visando ser eficiente, nossa abordagem
pressupõe um amplo conhecimento da natureza e conteúdo dos
estímulos antidemocráticos aos quais as massas estão expostas
na atualidade. Requer conhecimento das necessidades e anseios que
fazem as massas sensíveis a esses estímulos. Obviamente, os
principais esforços da liderança democráticas deveriam ser
direcionados àqueles pontos onde as disposições subjetivas e
os estímulos antidemocráticos coincidem. Considerando a
complexidade do problema, contentamo-nos aqui em discutir uma
área limitada, mas altamente crítica, em que os efeitos e
estímulos estão fortemente concentrados: a do ódio racial em
geral e, em particular, do totalitarismo anti-semita.
Salientou-se que esse último, até onde está em questão seu
ângulo político, é um fenômeno per se, a ponta de lança do
antidemocratismo, muito mais do que um manifestação
espontânea. Existem poucas áreas em que o caráter
manipulatório do antidemocratismo é mais revelador do que aqui.
Simultaneamente porém acontece dele se nutrir de tradições
arcaicas e fortes fontes emocionais. Os demagogos fascistas
normalmente chegam ao pico de suas performance quando mencionam
e rebaixam os judeus. Esse é um fato indiscutível, que sempre
ocorre em toda a forma de anti-semitismo e que, como tal, é
indicativo da existência de certos desejos mais ou menos
articulados de destruição da própria democracia, na medida em
que não há democracia sem o princípio da igualdade humana.
Algumas pesquisas científicas que lançaram
luz sobre essa relação entre suscetibilidade e estímulos
servem de ponto de partida para nossa abordagem. O Instituto de
Pesquisa Social examinou, no tocante aos estímulos, as técnicas
dos agitadores fascistas norte-americanos, tipificados por suas
abertas simpatias por Hitler e a Alemanha nazista (2). Esses
estudos mostraram claramente que os agitadores fascistas
americanos seguem um modelo rígido e altamente padronizado, que
se baseia quase inteiramente em seu conteúdo psicológico.
Não há programas políticos positivos. Recomenda-se apenas
medidas negativas, sobretudo contra as minorias, dado que elas
servem de escoadouro para a agressividade e a fúria de seus
sentimento reprimidos. A totalidade dos discursos dos agitadores,
monotonamente similares uns aos outros, representa antes de
mais nada uma performance com o propósito imediato de criar a
atmosfera desejada. Enquanto a superfície
pseudopatriótica dessas comunicações é uma mistura de
trivialidades pomposas e mentiras absurdas, seu sentido
subjacente apela aos anseios secretos da audiência: elas
irradiam destruição. A convergência entre esses homens que
sonham em ser o Führer e seus potenciais seguidores
descansa no sentido oculto que, através de repetição
incessante, é martelado na cabeça desses últimos. Os
conteúdos ideacionais das falas e panfletos desses agitadores
pode ser reduzida a um pequeno número - não mais que vinte - de
expedientes mecanicamente aplicados. O agitador não espera que a
audiência se aborreça pela constante repetição desses
expedientes e slogans batidos. Acredita que é a pobreza
intelectual de seu quadro de referência que fornece o halo de
auto-evidência, senão uma atração peculiar, àqueles que
sabem o que podem esperar para si mesmos da mesma forma como as
crianças desfrutam da repetição literal e interminável de uma
mesma história ou cançoneta.
O problema da suscetibilidade subjetiva ao
anti-semitismo e ao anti-democratismo foi examinado pelo Projeto
de pesquisa sobre discriminação social, uma empresa conjunta do
Grupo de estudo sobre opinião pública de Berkeley e o Instituto
de Pesquisa Social (3). O principal tema do estudo é a
conexão entre, por um lado, as motivações e os traços
psicológicos e, de outro, as atitudes sociais e ideologias
políticas e econômicas. As descobertas ampliaram o apoio a
hipótese de que há uma separação muito clara entre as
personalidades autoritárias e anti-democráticas e aqueles cuja
construção psicológica está em harmonia com os princípios
democráticos. Forneceu-nos evidência de que existe um
"caráter fascista". Embora possam ser encontradas
variações muito definidas desse caráter entre a população,
existe um núcleo concreto e tangível, uma síndrome comum mais
ampla, que pode ser bem definida como a do autoritarismo.
Enquanto tal, ela combina adulação e subserviência aos fortes
com agressividade e sádica contra os fracos. O caráter fascista
relaciona-se mais fortemente às atitudes discriminatórias e
contra as minorias do que às ideologias políticas abertas; em
outras palavras, a suscetibilidade aos estímulos fascistas não
se estabelece através do credo superficial dos sujeitos mas,
antes, no plano psicológico e caracteriológico de sua
existência.
A comparação dos resultados desses dois
estudos corrobora a hipótese teórica de que existe uma
afinidade muito íntima entre o sentido dos expedientes
político-psicológicos do fascismo e a estrutura
caracteriológica e ideológica daqueles a quem se dirige sua
propaganda. Provavelmente, o agitador fascista tende a ter
o caráter fascista. Aquilo que tem sido observado em relação a
Hitler - o fato de que era um psicólogo prático e astuto e que,
a despeito de sua aparente loucura, tinha muita noção das
disposições de seus seguidores - vale para seus imitadores
americanos que, casualmente, sem dúvida tinham familiaridade com
as receitas tão cinicamente oferecidas por ele em Mein Kampf.
Algumas ilustrações da harmonia existente entre suscetibilidade
e estímulos bastam para mostrá-lo. A técnica muito geral de
repetir sem parar certas fórmulas rígidas, empregada pelos
agitadores, se harmoniza com a inclinação compulsiva para
pensar de maneira rígida e estereotipada da personalidade
fascista. Para a personalidade fascista tanto quanto para
seu líder potencial, o indivíduo é mero espécime de seu tipo.
É isso que, em parte, dá conta da divisão fixa e intransigente
entre dentro e fora do grupo nela existente. De acordo com a
famosa descrição feita por Hitler, o agitador distingue
implacavelmente entre ovelha e coelho, aqueles que têm de ser
salvos, os escolhidos, "nós", e aqueles que não são
bons para se fazer mal proveito, que são condenados a priori
e devem morrer, "eles", os judeus. De maneira análoga,
a personalidade ou caráter fascista está convencido de que
todos aqueles que pertencem a seu próprio clã ou grupo, seus
amigos e parentes, são o tipo certo de gente, ao passo que tudo
que é estranho é visto com suspeita e, moralisticamente,
rejeitado. Assim, o compasso moral do agitador e seus potenciais
seguidores tem dois gumes. Embora ambos exaltem os valores
convencionais e, antes de mais nada, exijam total lealdade às
pessoas do mesmo grupo, nenhum deles reconhece deveres morais
para com os outros. O agitador professa indignação contra os
sentimentalistas do governo, que querem enviar "ovos ao
Afeganistão", da mesma forma como a personalidade
preconceituosa não sente piedade pelos pobres e se inclina a
considerar os desempregados como preguiçosos naturais, um
estorvo, e, o judeu, como um desajustado, um parasita, que
também poderia ser eliminado. O desejo de extermínio está
conectado com as idéias de sujeira e podridão, caminhando lado
a lado com a ênfase exagerada em valores físicos externos, como
asseio e limpeza. O agitador jamais cansa de denunciar os judeus,
os estrangeiros e os refugiados como vermes e sanguessugas.
Finalmente, poderíamos mencionar o consenso existente entre os
agitadores fascistas e o caráter fascista, algo que só pode ser
explicado através da psicologia profunda. O agitador posa como o
salvador de todos os valores estabelecidos e de seu país mas
está sempre reiterando pressentimentos sinistros e obscuros, a
"ruína eminente". Podemos encontrar elementos
semelhantes na composição da personalidade preconceituosa, que
sempre sublinha o positivo, a ordem conservadora das coisas, e
condena as atitudes críticas, por serem destrutivas.
Experimentos com o Teste de percepção temática de Murray
mostraram claramente que ela exibe fortes tendências destrutivas
em sua própria atividade imaginária espontânea. O indivíduo
preconceituoso vê em toda a parte a ação das forças do mal e
costuma ser vítima fácil de todos os tipos de superstição e
temores de catástrofe mundiais. Objetivamente, ele parece
preferir a situação caótica à ordem estabelecida em que finge
acreditar: ele se considera conservador mas seu conservadorismo
é uma impostura.
A correspondência entre os padrões reativos
e estímulos acima notada é de primordial importância em uma
abordagem limitada como a nossa, pois nos permite usar a técnica
da mentira dos agitadores como guia para, realisticamente, pôr
em prática o princípio da verdade. Lidando adequadamente com os
expedientes do agitador, poderíamos não apenas reduzir a
eficácia de sua técnica de manipulação de massa, altamente
perigosa do ponto de vista de seu potencial, mas apanhar as
características psicológicas que dificultam a um grande número
de pessoas aceitar a verdade. No plano racional, as asserções
feitas pelo agitador são tão espúrias, tão absurdas, que
devem haver razões emocionais muito poderosas para explicar
porque ele se sai com elas. Além disso, podemos presumir que a
audiência de algum modo sente esse absurdo. Porém, ao invés de
se desanimar com isso, acontece que ela o desfruta. É como se a
energia da fúria cega fosse dirigida contra a idéia de verdade
mesma, como se a mensagem realmente saboreada pela audiência
fosse inteiramente diferente de sua apresentação pseudamente
factual. É exatamente esse ponto crítico que deveria ser o alvo
de nosso ataque.
As conotações psicanalíticas de nossa discussão são óbvias. Transportar o princípio da verdade para além do nível das afirmações factuais e da refutação racional, o que até agora se mostrou ineficientee ou, pelo menos, insuficiente nesta área (9), e traduzi-lo em termos da personalidade dos sujeitos seria equivalente a fazer uma psicanálise em escala de massa. Obviamente isso não é factível. Além das considerações econômicas que excluem esse método e o limitam a casos selecionados (5), há uma razão mais intrínseca que deve ser mencionada. O sujeito fascista não é uma pessoa doente; não mostra qualquer sintoma, no sentido clínico ordinário. O Projeto de pesquisa sobre discriminação social parece indicar que, realmente e em muitos aspectos, ele é menos neurótico e, ao menos superficialmente, melhor ajustado que a personalidade não-preconceituosa. As deformações que sem dúvida existem na raiz da personalidade preconceituosa pertencem à esfera das "neuroses de caráter", que, como tem sido reconhecido pela psicanálise, são as mais difíceis de curar e, quando o são, somente através de um tratamento prolongado. Nas condições dominantes, a liderança democrática não pode esperar mudar a base das personalidades daqueles de cujo apoio depende a propaganda antidemocrática. Ela tem de se concentrar no esclarecimento das atitudes, ideologias e condutas, fazendo o melhor uso possível dos discernimentos revelados pela psicologia profunda, sem se aventurar em empreendimentos psicoterapêuticos. Obviamente, um programa como esse possui algo de um círculo vicioso: uma penetração substancial nos poderosos mecanismos de defesa do caráter fascista é algo que, realmente, só pode ser esperado através de uma análise completa, que está fora de questão. No entanto, tentativas nesse sentido deveriam ser feitas. Existem "efeitos de alavanca", para usar a expressão freudiana, na dinâmica psicológica. Embora seja fato que eles raramente ocorrem o bastante na vida cotidiana do indivíduo, a liderança democrática talvez possa se colocar em uma posição favorável à sua indução, dado que não pode se contentar apenas com transferência psicológica mas, ao contrário, deve se apoiar nas fontes da verdade objetiva e do interesse racional.
Nesse sentido, nosso conhecimento dos
expedientes dos agitadores pode se mostrar muito prestativo.
Podemos derivar dos mesmos como que vacinas contra a
doutrinação antidemocrática. Essa vacinas são mais
poderosas do que a mera reiteração das provas de falsidade das
várias alegações anti-semíticas. O panfleto ou manual que foi
desenvolvido conjuntamente pelo autor e Max Horkheimer descreve
cada um dos expedientes-padrão usados pelos agitadores, a
diferença entre suas pretensões abertas e suas intenções
ocultas, e os mecanismos psicológicos específicos que encorajam
a respostas dos sujeitos aos estímulos padronizados. O manual
não passou do estágio preliminar e ainda se coloca a ele a
tarefa extremamente difícil de traduzir as descobertas
objetivas em que se baseia em uma linguagem que possa ser
facilmente entendida, sem que se dilua sua substância.
Trata-se de uma tarefa que deve ser realizada através do método
da tentativa e erro, através do teste da inteligibilidade e
eficiência do manual para os vários grupos, e de seu
contínuo melhoramento, antes que seja distribuído em larga
escala. Objetivamente, uma distribuição prematura poderia ser
mais nociva do que boa. De qualquer modo o que é importante para
nós aqui é a abordagem como tal, e não sua elaboração final.
Seus méritos parecem descansar no fato de que combina o
princípio intransigente da verdade com a chance real de atingir
alguns pontos neurais do antidemocratismo. Para tanto é que
procura a elucidação desses fatores subjetivos que impedem a
consecução da verdade. O mínimo que pode ser dito em favor de
nossa abordagem é que ela induzirá as pessoas a refletir sobre
suas próprias atitudes e opiniões, que aceitam como
dadas, sem cair na atitude moralizadora ou admoestadora.
Tecnicamente trata-se de uma tarefa até certo ponto fácil, dado
o número muito limitado de expedientes empregado pelos
agitadores.
Nosso enfoque sem dúvida levantará algumas
objeções pesadas, seja em termos políticos, seja em termos
psicológicos. Politicamente, pode ser argüido que os interesses
de poder existentes por trás do reacionarismo contemporâneo
são muito mais fortes de serem vencidos do que qualquer
"mudança de pensamento". Também pode ser dito que os
movimentos políticos de massas modernos parecem ter um momento
sociológico próprio, que é completamente impermeável aos
métodos introspectivos. A primeira objeção não pode ser
totalmente contestada com base na [análise da] relação entre
líder e massa, mas tem de ser vista em conexão com as
constelações existentes dentro do campo do poder político. A
segunda não nos parece válida sob as circunstâncias atuais,
embora pudesse ser importante numa situação pré-fascista
muito pronunciada. Ela tende a subestimar o elemento
subjetivo do desenvolvimento social e a fetichizar a tendência
objetiva. O momento sociológico não pode ser hipostasiado. A
hipótese sobre a existência de uma mentalidade de grupo é
quase toda mitológica. Freud assinalou muito convincentemente
que as forças que servem como cimento irracional dos
grupos sociais, tais como salientadas por autores como Le Bon,
funcionam realmente dentro de cada indivíduo do grupo e, por
isso, não podem ser vistas como entidades independentes da
dinâmica psicológica do indivíduo. Considerando que a ênfase
de nossa abordagem repousa principalmente no plano psicológico,
a crítica vinda nessa direção merece uma discussão mais
detalhada. Argumentar-se-ia que nós não podemos antecipar
qualquer "efeito profundo" para nossa vacinação.
Admitindo-se a correção de nossa hipótese sobre a subjacência
de um potencial para o desenvolvimento do caráter fascista, que
existe na harmonia preestabelecida entre ele e os expedientes dos
agitadores, segue-se que não podemos esperar que o
desmascaramento desses expedientes altere substancialmente suas
atitudes, já que elas parecem ser antes reproduzidas do que
engendradas pelas arengas dos agitadores. Na medida em que nós
realmente não tocamos na interação de forças existente no
inconsciente de nossos sujeitos, nossa abordagem precisa se
manter racionalista ainda que atribua disposições irracionais
ao seu objeto de estudo. O discernimento abstrato das próprias
irracionalidades por parte desses sujeitos, privado da
penetração de suas motivações reais, não funcionaria
necessariamente de maneira catártica. No curso de nossos estudos
encontramos numerosas pessoas que embora admitam que
"elas não devam ser preconceituosas" e exibam algum
conhecimento das fontes que as tornam assim, todavia sustentam
firmemente essa síndrome. Destarte convém que não se subestime
a função do preconceito no domínio psicológico do próprio
indivíduo, nem na força de sua resistência. Embora as
objeções feitas acima indiquem limitações muito claras
de nossa abordagem, elas não deveriam nos desencorajar
inteiramente.
Para iniciar sem ir muito a fundo,
consideremos a surpreendente ingenuidade política de um
grande número de pessoas - de nenhum modo apenas as
sem-educação. Os programas, plataformas e slogans
[autoritários] são aceitos pelo seu valor de face; julgados
pelo que parece ser seu mérito imediato. Deixando de lado a
suspeita um tanto vaga sobre os burocratas e a rapina política,
suspeita essa que, note-se, é característica da
personalidade antidemocrática muito mais do que a que lhe é
oposta, a idéia de que as metas políticas escondem muito dos
interesses daqueles que os defendem é estranha a muitas pessoas.
Ainda mais estranha, porém, é a idéia de que as próprias
decisões políticas dependem em grande parte de fatores
subjetivos sobre os quais nem mesmo pode-se estar atento. O shock
causado pela chamamento à atenção para essa possibilidade pode
ajudar a produzir o efeito de alavanca acima mencionado. Embora
nossa abordagem não pretenda reorganizar o inconsciente daqueles
que esperamos alcançar, todavia pode revelar a eles que eles
mesmos, tanto quanto sua ideologia, representam um problema.
As chances de se conseguir isso são fortes pelo fato de que o
anti-semitismo escancarado ainda é julgado como algo de baixa
reputação, de que os que se entregam a ele o fazem com má
consciência e de que, por isso, eles se acham até certo
ponto numa situação de conflito. Dificilmente pode haver
qualquer dúvida de que a transição da atitude ingênua para a
reflexiva produz um certo enfraquecimento de sua violência. O
controle do ego é fortalecido, mesmo se o ego não é tocado. A
pessoa que percebe o anti-semitismo como um problema, mas, ainda,
que ser um anti-semita é um problema, provavelmente será
menos fanática do que alguém que, em sentido e alinhado, engole
o isca do preconceito.
A possibilidade de revelar aos sujeitos seu
anti-semitismo pelo que ele é: seu próprio problema interno, é
ainda mais importante pelas seguintes considerações
psicológicas. Como tem sido notado, a pessoa preconceituosa
externaliza todos os valores: ele acredita firmemente na
importância última de categorias como natureza, saúde,
respeito aos padrões estabelecidos, etc. Revela relutância bem
definida contra a introspecção e é incapaz de pôr a culpa em
si mesma ou naqueles com que se identifica. Os estudos clínicos
não têm dúvida que essa atitude é sobretudo uma formação
reativa. Embora sendo superajustado ao mundo externo, a pessoa
preconceituosa se sente insegura em nível mais profundo (6). A
falta de vontade olhar para si mesma é, antes de mais nada, uma
expressão do medo de fazer descobertas desagradáveis. Noutras
palavras, algo que esconde os conflitos subjacentes à sua
personalidade. Entretanto, como esses conflitos inevitavelmente
produzem sofrimento, a defesa contra a auto-reflexão não deixa
de ser ambígua. Embora o indivíduo preconceituoso deteste ver
seu próprio "lado mau", ele não obstante espera algum
tipo de alívio da hipótese de vir a se conhecer melhor do que
ele o faz normalmente. A dependência de muitas pessoas
preconceituosas à direção externa, sua prontidão em consultar
as descrições oferecidas por todos os tipos de charlatões, do
astrólogo ao colunista de relações humanas, são, ao menos em
parte, expressões distorcidas e externas de seu desejo de
autoconsciência. Embora sejam inicialmente hostis às
entrevistas psicológicas, as pessoas preconceituosas
freqüentemente terminam derivando algum tipo de gratificação
das mesmas, uma vez que ela tenha começado e por mais que ela
seja superficial. Trata-se de um desejo latente que, em última
análise, é o desejo da própria verdade e que poderia ser
satisfeito através das explicações do tipo em que pensamos.
Tais entrevistas poderiam dar a essas pessoas o tipo de alívio e
acender o que alguns psicólogos chamam de uma
"experiência-surpresa" [aha-experience]. Não
se deveria passar por alto que a base desse efeito é preparada
pelo prazer narcisístico que muitas pessoas obtém daquelas
situações em que elas se sentem importantes pelo simples fato
de serem elas mesmas o foco de interesse.
Contra-argumentando, alguém poderia apontar
para o fato indiscutível de que essas pessoas têm de defender
seu próprio preconceito, dado que ele satisfaz numerosas
funções, que variam desde uma pseudo-intelectual, o
fornecimento de fórmulas fáceis e uniformes para a
explicação de todo o mal que existe no mundo, até a
criação de um objeto para catexe negativa, de um catalisador da
agressividade. Se essas pessoas realmente têm de ser
encaradas como portadoras de uma síndrome de caráter, não
parece provável que elas vão se emancipar de uma fixação em
satisfazer esse objetivo que é determinada pela estrutura
interna de sua personalidade, muito mais do que por esse
objetivo. A última observação todavia contém um
elemento que transcende uma crítica plausível de nossa
abordagem. Não é tanto o objetivo mas a pessoa que importa no
tocante ao preconceito. Se, como se diz muitas vezes, o
anti-semitismo tem muito pouco a ver com os judeus, a fixação
do indivíduo preconceituoso sobre os seus objetos de preconceito
não deveria ser enfatizada. Ninguém está duvidando da rigidez
do preconceito, isto é, da existência de certos pontos cegos
que não são acessíveis à dialética da experiência.
Entretanto essa rigidez afeta a relação entre o sujeito e o
objeto do ódio muito mais do que a escolha do objeto ou mesmo a
obstinação com que ele é mantido. Empiricamente, aqueles que
são rigidamente preconceituosos revelam uma certa mobilidade em
relação à escolha do seu objeto de ódio (7). Isso é algo que
nasceu de vários casos estudados no âmbito do Projeto de
Pesquisa sobre discriminação social. Por exemplo, as pessoas
que claramente possuem a síndrome de caráter fascista poderiam
- por causa de alguma estranha razão, como ter sido casado com
uma mulher judia, substituir os judeus por algum outro eventual
grupo, armênios ou gregos, como objeto de ódio. Entre os
indivíduos preconceituosos, a urgência instintiva é tão forte
e sua relação com qualquer objeto, sua aptidão afetiva às
coisas reais, seja como objeto de amor, seja como objeto de
ódio, é de natureza tão problemática, que não se consegue
permanecer fiel nem mesmo ao inimigo escolhido. O mecanismo
projetivo ao qual o indivíduo se encontra sujeito pode ser
desviado de acordo com o princípio da menor resistência e as
oportunidades oferecidas pela situação em que ele se encontra.
Acreditamos que nosso manual talvez possa criar uma situação
psicológica na qual a catexe negativa do judeus venha a ser
destruída. Isso, é claro, não deve ser mal entendido; não se
pretende que, com isso, alguém, usando de manipulação,
substitua os judeus por quaisquer outros grupos como objeto de
ódio. Dizemos apenas que a casualidade, arbitrariedade e
debilidade do objeto escolhido per se podem ser transformadas
em uma força com a qual se poderia fazer esses sujeitos de mente
anti-semita duvidassem de sua própria ideologia. Quando eles
aprenderem que quem eles odeiam é menos importante do que o fato
de que eles odeiam alguma coisa, seus egos poderiam deixar de
lado o ódio e, por aí, poderia ser que a intensidade de sua
agressividade diminuísse.
Nossa intenção é usar a mobilidade do
preconceito para dominá-lo. Nossa abordagem poderia virar a
indignação da pessoa preconceituosa contra o objeto que a
merece: os expedientes dos agitadores e a própria ilegitimidade
da manipulação fascista. Com base em nossas explicações não
seria muito difícil fazer os sujeitos adquirir consciência das
trucagens e da insinceridade das técnicas de propaganda
antidemocráticas. O importante a esse respeito não é tanto a
falsidade objetiva das afirmações anti-semitas como o
menosprezo por aqueles a quem essa propaganda se dirige e o modo
como suas fraquezas são sistematicamente exploradas [por essas
técnicas]. Neste aspecto, as forças da resistência
psicológica podem trabalhar contra o antidemocratismo mais do
que contra o esclarecimento. Ninguém, e menos ainda a
personalidade potencialmente fascista, deseja ser tratado como
trouxa, mas é exatamente isso que o agitador faz, quando ele
relata às suas audiências que elas são feitas de trouxas pelos
judeus, banqueiros, burocratas e demais "forças
sinistras". As tradições americanas do senso comum e
da resistência às vendas podem ser revitalizadas por meio de
nossa abordagem, dado que neste país o pretenso Führer,
em muitos aspectos, não passa de um padeiro idolatrado.
Existe uma área específica na qual a
exploração psicológica, uma vez revelada, é capaz de virar um
bumerangue. O agitador geralmente posa de pequeno grande homem, a
pessoa que, a despeito de seu exaltado idealismo e infatigável
vigilância, pertence ao povo, é um vizinho, alguém próximo
dos corações da gente comum, que reconforta por meio de sua
simpatia condescendente e cria uma atmosfera de calor e
companheirismo. Essa técnica, que, note-se, é muito mais
característica do cenário americano do que os bem planejados
encontros de massa nazistas, visa atingir uma condição
específica, própria da sociedade altamente industrializada em
que vivemos. Na esfera da cultura de massa, esse fenômeno é
conhecido como "nostalgia". Quanto mais a
tecnificação e especialização irrompem nas relações humanas
imediatas que estão associadas à família, à oficina e à
pequena empresa, mais os átomos sociais, que formam as novas
coletividades, anseiam por abrigo, segurança econômica e pelo
que os psicanalistas chamariam de restituição da situação
uterina. Parece que uma parcela expressiva dos fanáticos
fascistas - a chamada franja lunática - consiste dessas pessoas,
sozinhas, isoladas e, de muitos modos, frustradas, em cuja
psicologia a citada nostalgia desempenha um importante papel. O
trabalho do agitador consiste em astuciosamente conquistar seu
apoio, posando como seu vizinho. Desse modo, porém, um motivo
verdadeiramente humano, o anseio por amor, por relações
genuínas e espontâneas, é apropriado pelos promotores de
sangue-frio do inumano. O próprio fato de que as pessoas sofrem
com a manipulação universal é usado de maneira manipulatória.
Os sentimentos mais sinceros das pessoas são pervertidos e
gratificados fraudulentamente. Ainda que elas caiam nisso durante
certo tempo, os desejos envolvidos são tão profundos porém que
não há como elas serem [definitivamente] satisfeitas por essa
impostura. Tratadas como crianças, as pessoas acabarão reagindo
como tais e vindo a perceber que o tio que lhes fala como um
bebê só o faz para melhor insinuar seus objetivos ulteriores.
[E] Através de experiências como essa pode ocorrer que a
energia inerente a seus desejos finalmente se volte contra sua
exploração.
NOTAS
1. Sigmund Freud, Group Pychology and the
Analysis of the Ego (Londres, 1922; trad. bras. Psicologia de
grupo e análise do ego. 2ª ed: Rio de Janeiro,
Imago, 1987).
2. T.W. Adorno, L. Lowenthal e P. Massin escreveram
estudos monográficos sobre o assunto. Uma apresentação
sistemática se encontra no volume Prophets of Deceit, de
L. Lowenthal e N. Guterman (Nova York, 1949). Confira também T.
W. Adorno, "Anti-semitism and Fascist Propaganda", in:
Anti-semitism - A Social Disease, ed. Ernst Simmel (Nova
York, 1946) , a partir da página 125. Além disso, devemos fazer
menção ao estudo sobre Coughlin, The Fine Art of Propaganda,
de A. McClung, empreendido de forma independente pelo Instituto
de análise da Propaganda.
3. As descobertas são apresentadas no livro The
Authoritarian Personality, de T.W. Adorno, E.F. Brunswik,
D.H. Levinson e R. N. Sanford (Nova York, 1950).
4. O exemplo mais pertinente é o dos Protocolos
dos Sabios do Sião. Sua falsidade, provada sem qualquer
margem para ambigüidade, foi tão amplamente difundida e
oficialmente sustentada pelas cortes independentes que nem mesmo
os nazistas puderam defender a autenticidade desse
pseudodocumento. Entretanto, eles continuam sendo usados com
propósito de propaganda e sendo aceitos pela população. Os
Protocolos são como uma hidra cujas cabeças crescem e se
multiplicam na medida em que são cortadas. Os panfletos
fascistas neste país [EUA] ainda trabalham com eles.
Característica é a declaração do falecido Alfred Rosenberg,
que, depois do julgamento na Suiça, afirmou que mesmo sendo
fraudulento, o documento é "genuíno em espírito".
5. J.F. Brown descreveu um caso desse tipo em um
estudo monográfico empreendido no quadro de trabalho do Projeto
de Pesquisa sobre discriminação social e publicado sob o
título "Anxiety States", em Case Histories in
Abnormal and Clinical Psychology, ed. Burton e Harris (Nova
York, 1948). Outros extensos estudos de caso psicanalíticos
sobre personalidades preconceituosas serão publicados no volume
a sair intitulado Antisemitism, A psycholdynamic
Interpretation, de Nathan Ackerman e Marie Jahoda (Nova York,
1950).
6. O papel da insegurança como motivador do
preconceito foi sublinhado por vários estudos e comentado
conclusivamente no estudo The Anatomy of Prejudice, de
Bettelheim e Shils. Deveria ser notado que a insegurança
econômica, que tão grande papel joga na formação das
ideologias anti-minorias, parece ser inseparavelmente interligado
a uma outra, psicológica, que se baseia na má resolução do
Complexo de Édipo, isto é, do antagonismo reprimido
contra o pai. A interconexão entre as motivações econômica e
psicológica ainda precisa de maior clarificação.
7. No plano político, isso pode ser ilustrado com
algumas observações relativas à Alemanha. A propaganda nazista
sempre achou fácil desviar os sentimentos da população de um
para outro inimigo. Os poloneses foram cortejados por um certo
número de anos, antes de Hitler lançar sua máquina de guerra
contra eles. Os russos, referidos como arqui-inimigos,
tornaram-se aliados potenciais em 1939, voltando a seu status de Untermenchen
em 1941. Essas mudanças súbitas e mecânicas de uma ideologia
para outra aparentemente não encontraram nenhum resistência por
parte da população. A relação entre rigidez e mobilidade foi
elaborada teoricamente por Max Horkheimer e T.W. Adorno em
"Elementos do anti-semitismo", em Dialetica do
iluminismo [Rio de Janeiro, Zahar, 1985].
[ADENDO]
Primeiramente o manual descreve a diferença
entre o orador político e os vários tipos de agitadores,
propondo alguns critérios para reconhecer o segundo.
Adicionalmente, discute os expedientes aos quais a técnica dos
agitadores pode ser reduzida, e explica como eles trabalham e
quais são seus apelos específicos aos ouvintes.
Em seguida apresentamos dois exemplos dessas
discussões:
1. Mártir - O principal propósito do
agitador é fazer com que dirijamos nosso interesse humano para
ele. Ele relata-nos que é um homem honesto e independente,
que sacrifica tudo à sua causa e vive sob modestas
circunstâncias. Ele repete que não é amparado pelo dinheiro
grosso ou qualquer poder existente. Particularmente anseia em nos
fazer crer que não é um político mas, antes, está distante e
de algum modo acima da política.
Fingir solidão é um modo fácil de capturar
nossa simpatia. A vida de hoje é difícil, fria e complicada.
Todo o mundo de algum modo é solitário. É isso o que ele
explora. Sublinhando seu isolamento, ele parece ser um de nós,
alguém que sofre das mesmas causas das quais todos nos sofremos.
Realmente, porém , ele não está sozinho. É o homem com boas
conexões e que vai se vangloriar delas sempre que se apresente
uma oportunidade. Nesse momento, por exemplo, lerá para nós
a carta daquele senador que o elogia pelo seu zelo patriótico.
O agitador fala em termos de venda o tempo todo, mas quer nos fazer crer que não está vendendo nada. Tem medo de nossa resistência às vendas e, por isso, martela em nossas cabeças a idéia de que é uma alma pura, enquanto os outros tentam nos fazer de trouxas. Na condição de publicitário espertalhão, explora até mesmo nossa desconfiança na publicidade.
Sabe que nós ouvimos falar da corrupção e
da rapina política, utilizando nossa aversão a esse tipo de
coisa para seus próprios objetivos políticos, porque, de fato,
é ele o saqueador da política, é ele que tem prepostos,
guarda-costas, interesses financeiros obscuros e tudo o mais que
pertence à escuridão. [Apesar disso] está sempre gritando:
"peguem o ladrão !"
Ainda existe porém mais uma razão para ele
fazer o papel de lobo solitário. Ele posa como um ser com tantas
necessidades que nos levará a sentir alguma coisa por ele e a
sentirmos orgulho disso. Na realidade, somos pobres ovelhas.
Enquanto ele tenta cortejar nossa vaidade, sugerindo que tudo
depende de irmos em sua ajuda, ele realmente só quer nos tornar
seus seguidores, esses homens que só dizem sim e que agem
automaticamente de acordo com suas ordens.
2. Se vocês soubessem - Os discursos
do demagogo são perpassados por indicações de segredos
obscuros, escândalos revoltosos e crimes impronunciáveis. Ao
invés de discutir questões sociais e políticas de maneira
objetiva, ele culpa as pessoas más por todas as doenças da qual
padecemos. Está sempre acusando negociatas, corrupção ou sexo.
Ele posa como cidadão indignado, que deseja limpar a casa, e
promete fazer revelações sensacionais. As vezes faz seguir
essas promessas de histórias fantásticas, de arrepiar o
cabelo. Entretanto, assim como ele geralmente não mantém sua
promessa, ele sugere que seus segredos são pavorosos demais para
serem contados em público e que seus ouvintes sabem muito bem do
que ele está falando. Ambas as técnicas, a performance tanto
quanto a suspensão das revelações, trabalham a seu favor.
Quando ele conta toda a história, fornece a
seus ouvintes a espécie de gratificação que eles costumam
obter das colunas de fofoca e páginas de escândalos, só que
com cores muito mais reluzentes. Muitas pessoas não viram a
cabeça quando sentem o cheiro de maus odores mas, ao contrário,
respiram avidamente o ar empestado, aspiram o fedor e tentam
descobrir de onde ele vem, embora lamentando o quanto tudo é
repulsivo. Não existe dúvida de que essas pessoas, embora
nem mesmo cheguem a notar, desfrutam do mal cheiro.
Trata-se de uma disposição amplamente disseminada, para qual
agitador escandalosamente apela. Pretendendo corrigir os crimes e
os vício dos outros, ele satisfaz a curiosidade de seus
ouvintes, aliviando-os do tédio de suas vidas
monótonas. Freqüentemente as pessoas invejam quem elas
acreditam que fazem as coisas que secretamente elas gostariam de
fazer para si mesmas. Ao mesmo tempo, o demagogo lhes dá assim
o sentimento de superioridade.
Quando ele não conta a história, ele cria
expectativa nos ouvintes com algumas indicações vagas
que, não obstante, permitem excitar suas mais selvagens
imaginações. Assim eles podem pensar nos que eles preferirem. O
agitador parece ser pois alguém que sabe, que tem toda a
informação de bastidores e que, um dia, vai pôr tudo para fora
com evidência arrasadora. Entretanto ele também sugere que não
é preciso contar tudo para eles: eles de algum modo sabem do que
se trata e, de resto, seria muito perigoso discutir o assunto em
público. Os ouvintes são sempre tratados como se fossem pessoas
de sua confiança, membros do seu próprio grupo, de modo a que o
segredo comum e inexprimível os ligue ainda mais intimamente a
ele.
Obviamente seus ouvintes jamais ousariam realizar as façanhas que ele atribui aos seus inimigos. Quanto menos eles podem satisfazer seus desejos extravagantes de luxo e prazer, mais furiosos eles se tornam contra aqueles que, segundo fantasiam, usufruem do fruto proibido. Todos querem "punir os bastardos". Enquanto dá suculentas descrições das orgias de champanhe celebradas pelos políticos de Washington e banqueiros de Wall Street com as dançarinas de Hollymood, ele promete o dia do ajuste de contas, quando, em nome da decência, ele e sua turba celebrarão um bom e honesto banho de sangue.