Theodor W Adorno
[* Publicado originalmente em Ernts Simmel (org.), Anti-semitism: A social disease. Madison: International University Press, 1946. Reproduzido em Gesammelte Schriften Vol. 9, T. I [Soziologische Schriften] Frankfurt: Surhkamp Verlag, 1975, p. 397-407. Traduzido por Francisco Rüdiger.
As observações contidas neste artigo
baseiam-se em três estudos realizados pelo Projeto de Pesquisa
sobre o Anti-semitismo, patrocinado pelo Instituto de Pesquisa
Social na Universidade de Columbia. Os referidos estudos analisam
extensa amostra de propaganda anti-semita e anti-democrática,
constituída sobretudo de panfletos, publicações semanais
e transcrições das palestras radiofônicas feitas por
agitadores da costa oeste [dos Estados Unidos]. A natureza dos
trabalhos é, primariamente, psicológica, embora muitas vezes
toquem em problemas econômicos, políticos e sociológicos.
Conseqüentemente, em consideração aqui, mais do que os
conteúdos objetivos, estão os aspectos psicológicos dessa
propaganda. Entre seus objetivos não está o de enunciar uma
teoria psicanalítica plena e acabada da propaganda
anti-democrática, nem o de dar completo tratamento dos métodos
empregados. Outrossim, omitiu-se os fatos e interpretações
geralmente conhecidos daqueles familiarizados com a psicanálise.
O objetivo é, antes apontar algumas descobertas que, embora de
maneira fragmentada e preliminar, possam vir a sugerir futuras
avaliações psicanalíticas.
O material estudado exibe em si mesmo um
enfoque psicológico, pois é nestes termos, muito mais do que em
bases objetivas, que é concebido. Ele procura conquistar as
pessoas trabalhando com seus mecanismos inconscientes, e não
apresentando idéias e argumentos. A técnica oratória dos
demagogos fascistas tem uma natureza astuciosamente ilógica e
pseudo-emocional, mas não é só; mais do que isso, programas
políticos positivos, postulados ou qualquer outra idéia
política concreta desempenham um papel menor em comparação com
os estímulos psicológicos aplicados à audiência. É partindo
desses estímulos e outras informações, mais do que das
plataformas confusas de seus discursos, que podemos
identificá-los como sendo fascistas.
Consideremos três características da
abordagem predominantemente psicológica da atual propaganda
fascista norte-americana.
1. Trata-se de propaganda personalizada,
essencialmente não-objetiva. Os agitadores gastam boa parte de
seu tempo falando sobre si mesmos ou de suas audiências. Eles se
apresentam como lobos solitários, típicos cidadãos americanos,
cheios de robustez e, como tais, sujeitos incansáveis e
sem traços de egoísmo. Também estão sempre divulgando
intimidades reais e fictícias sobre suas vidas e a de seus
familiares. Além disso, parecem possuir um caloroso interesse
humano nas pequenas preocupações cotidianas de seus ouvintes, a
quem descrevem como cristãos pobres mas honestos, guiados
pelo bom sendo mas não-intelectuais. Trata-se de homens que se
identificam com seus ouvintes e põem uma ênfase muito grande no
fato de serem ao mesmo tempo homens modestos e líderes de grande
calibre. Freqüentemente, referem-se a si mesmos como mensageiros
de alguém que está por vir - um truque familiar aos discursos
de Hitler. Provavelmente essa técnica está intimamente
relacionada à substituição do imaginário paterno por um ego
coletivo [1]. Outro esquema de personalização por eles
privilegiado é reiterar as pequenas necessidades financeiras e
suplicar por pequenas quantias de dinheiro. Os agitadores
repudiam qualquer pretensão de superioridade, sugerindo que o
líder por vir é alguém tão fraco quanto seus irmãos mas que,
ao mesmo tempo, ousa confessar sua fraqueza sem inibição e, por
isso, está pronto a se converter em um homem forte.
2. Todos os demagogos trocam os fins pelos meios. Falam muito sobre "este grande movimento", sobre o seu desejo em promover um renascimento americano, mas quase nada sobre onde esse movimento vai levar, que organização é boa para tanto e o que de positivamente se pretende alcançar com esse misterioso renascimento. Eis um típico exemplo de descrição redundante da idéia de renascimento feita por um dos mais bem sucedidos agitadores da costa oeste: "Meu amigo, só existe um meio de se conseguir um renascimento. A América inteira , todas as igrejas, tem de conseguir esse renascimento. A história do grande renascimento galês é simplesmente isso. A piedade divina levou os homens aos desespero e, então, eles começaram a orar, a pedir que o renascimento lhes fosse enviado, e onde quer os homens e mulheres fossem lá chegava o renascimento." A glorificação da ação, daquilo que está acontecendo, simultaneamente substitui e oblitera os propósitos do assim chamado movimento. O fim é o de que "se possa demonstrar ao mundo que existem patriotas, homens e mulheres cristãos, temerosos de Deus e que, apesar de tudo, desejam doar suas vidas a seu lar, à sua terra natal e à causa de Deus." [2]
3. Dado que todo o peso desta propaganda visa
promover os meios, ela própria é seu conteúdo último. Noutras
palavras, a propaganda funciona como uma espécie de satisfação
de desejos. Este é um de seus mais importantes padrões. As
pessoas são deixadas à vontade, como se estivessem tomando
posse de um narcótico; são aceitas com base na confiança,
tratadas como uma elite, que merece saber seus obscuros
mistérios, escondidos para quem está de fora. A bisbilhotice é
ao mesmo tempo encorajada e satisfeita. Constantemente se relatam
histórias escandalosas, a maioria fictícias, particularmente as
de atrocidades e de excessos sexuais; e a indignação para com
as sujeiras e crueldades não é senão uma racionalização
propositalmente fina e transparente do prazer que esse tipo de
história proporciona aos ouvintes. Ocasionalmente a língua
resvala, e o escândalo mascateado facilmente se deixa
identificar como um fim em si mesmo. Certa vez, por exemplo, um
demagogo da costa oeste prometeu fornecer todos os detalhes sobre
um falso decreto, com o qual o governo soviético estaria
organizando a prostituição da mulher russa. Quando anunciou
essa história, o locutor disse que homem algum ouviria esses
fatos sem sentir um frio na espinha. A ambivalência contida na
expressão "frio na espinha" é por demais evidente.
Pode-se explicar até certo ponto
racionalmente esses padrões. Pouquíssimos agitadores americanos
ousariam confessar abertamente suas metas fascistas e
anti-democráticas. Diferentemente da Alemanha, neste país a
ideologia democrática está cercada de certos tabus, cuja
violação poderia ameaçar as pessoas envolvidas na subversão.
A censura política e a tática psicológica constituem, juntas,
razão para que, aqui, o demagogo fascista tenha muito mais
restrição com relação ao que pode dizer. Além disso, é
preciso considerar que certa vaguidade a respeito dos objetivos
políticos é intrínseco ao fascismo. Isso se deve, em parte, à
sua natureza intrinsecamente ateórica, em parte ao fato de que
seus seguidores acabarão sendo enganados. Os chefes fascistas
devem evitar qualquer formulação que, mais tarde, eles precisem
esticar. Também deverá ser notado que, relativamente às
medidas terroristas e repressivas, o fascismo habitualmente vai
além do que ele tinha anunciado. Totalitarismo significa
desconhecer limites, não dar nenhum descanso para respirar,
conquistar impondo domínio absoluto, exterminar totalmente os
inimigos escolhidos. Perante esse significado fascista do que vem
a ser "dinamismo", qualquer programa bem talhado
funcionaria como limitação, uma espécie de garantia dada ao
adversário. Essencial ao totalitarismo é que nada seja
garantido, não se coloque nenhum limite a sua brutal
arbitrariedade.
Finalmente, precisamos ter em mente que, para
o totalitarismo, as massas não são seres humanos
auto-determinados, que racionalmente decidem seu próprio destino
e, portanto, devem ser interpelados como sujeitos racionais, mas
ao invés são meros objetos de medidas administrativas, que,
acima de tudo, devem ser ensinados a se auto-anular e a obedecer
ordens.
Precisamente este ponto todavia requer um
escrutínio mais detalhado, se quer ir um pouco mais além da
corriqueira hipótese sobre o hipnotismo de massa promovido pelo
fascismo. É altamente duvidoso se o que ocorre no fascismo é
uma verdadeira hipnose, pois isso também pode ser uma metáfora
fácil, que permite ao observador dispensar uma análise mais
aprofundada do fenômeno. Provavelmente, a sobriedade cínica é
muito mais característica da mentalidade fascista do que a
intoxicação psicológica. Além do mais, todos que já tiveram
a chance de observar as atitudes fascistas puderam notar que
mesmo os estágios de entusiasmo coletivo, aos quais se refere o
termo hipnose coletiva, possuem um elemento de manipulação
consciente, seja pelo líder, seja pelo próprio indivíduo.
Dificilmente pode-se ver nesses estágios o resultado de um
contágio passivo. Falando psicologicamente, o ego tem um papel
muito grande na irracionalidade fascista, para que se interprete
o seu suposto êxtase como mera manifestação do inconsciente.
Sempre existe algo de espúrio, de auto-estilizado e
auto-ordenado na histeria fascista. Isso demanda um atenção
critica, se é para a teoria psicológica do fascismo não se
render aos slogans irracionais que o próprio fascismo
promove.
Posto isso, podemos perguntar o que é que,
afinal, a propaganda fascista e, em particular, a anti-semita,
deseja conseguir ? Para ser exato, sua meta não é
"racional", porque ela não tenta convencer o povo e
jamais deixa o plano não-argumentativo. Existe aí uma conexão
em que dois fatos merecem detalhada investigação :
1. A propaganda fascista não ataca oponentes reais
mas [....]. Isto é, constrói uma imagem do judeu, do comunista,
para depois parti-la em pedaços, sem cuidar muito da maneira
como essa imagem se relaciona com a realidade.
2. Ela não emprega a lógica discursiva pois, antes
disso, particularmente quando se trata de exibições retóricas,
ela é o que pode ser chamado de fluxo organizado de idéias. A
relação entre as premissas e inferências é substituída por
uma vinculação de idéias que repousa em sua mera similaridade
e, mais freqüentemente, em associações, ao empregar a mesma
palavra característica em duas proposições que, logicamente,
não têm qualquer relação. Esse método não apenas escapa aos
mecanismos de exame racionais como também torna mais fácil seu
acompanhamento pelo ouvinte. O ouvinte não tem exatamente de
fazer um pensamento, podendo se entregar passivamente ao fluxo de
palavras no qual mergulhou.
A despeito desses padrões regressivos, a
propaganda anti-semita de modo algum é totalmente irracional.
Irracionalidade é um termo muito vago para descrever
suficientemente uma fenômeno psicológico tão complexo. Sabemos
muito bem que a propaganda fascista, com todas as suas
fantásticas distorções e contorcionismos lógicos, é
conscientemente planejada e organizada. Caso se deseje chamá-la
de irracional, é preciso observar que se trata de uma
irracionalidade aplicada antes que espontânea, uma espécie de
psicotécnica, derivada dos efeitos conspícuos com que se
especula na maioria das expressões da cultura de massa da
atualidade - por exemplo, filmes e transmissões radiofônicas.
Portanto, ainda que seja verdade que a mentalidade do agitador
fascista reflita algo da confusão mental de seus possíveis
seguidores e que os próprios chefes "sejam tipos
histéricos ou paranóicos", a verdade é que eles souberam
aprender como utilizar suas predisposições psicóticas ou
neuróticas para lograr certos fins que estão totalmente
adaptados ao princípio da realidade. E isso, quer tendo partido
da experiência, quer tendo considerado o
extraordinário exemplo de Hitler. As condições prevalecentes
em nossa sociedade tendem a transformar as neuroses e mesmo a
loucura moderada em mercadoria, que os que delas padecem podem
passa adiante, uma vez descobrindo que há muitos outros com
doenças afins às suas. O agitador fascista via de regra é um
exímio vendedor de seus próprios defeitos psicológicos.
Obviamente isso só é possível devido à similaridade
estrutural existente entre o líder e seus seguidores. O objetivo
da propaganda é estabelecer a concordância entre eles, muito
mais do que fornecer qualquer idéia ou emoção que, desde o
início, não pertencesse à sua audiência. Posto isso, o
problema da verdadeira natureza psicológica do fascismo pode ser
formulado: Em que consiste esta relação entre líder e
seguidores na situação de propaganda?
A observação acima sugerida de que esse tipo de propaganda funciona como forma de gratificação seria um primeiro ponto de referência. Podemos compará-la com o que acontece no fenômeno social novela (soap-opera). Assim como a dona de casa se sente impelida a comprar a sopa vendida pelo patrocinador, ao desfrutar os sofrimentos e boas ações de suas heroínas preferidas por um quarto de hora através o rádio, também os ouvintes da propaganda fascista aceitam a ideologia representada pelo locutor em gratidão pelo show com o qual se divertiram. A palavra certa de fato é essa, "show". O trabalho de construção de um chefe auto-estilizado assemelha-se às performances remanescentes do teatro, do esporte e dos chamados autos de fé religiosos. É característico dos demagogos fascistas se vangloriar de terem sido atletas exemplares em sua juventude: é assim que eles se comportam. Eles berram e choram, fingem lutar contra o demônio e tiram seus casacos quando atacam os chamados "poderes sinistros".
Os líderes fascistas típicos são
freqüentemente chamados de histéricos. Não importa como
chegaram a essa atitude. A verdade é que seu comportamento
histérico preenche certa função. Embora eles de fato se
pareçam a seus seguidores em não poucos aspectos, diferem
em um ponto importante: eles não conhecem nenhuma inibição ao
se expressarem. Dizendo e fazendo o que eles gostariam mas
ou não ousam ou não podem, os agitadores fascistas atuam
de modo vicário para seus desarticulados ouvintes. Eles violam
os tabus que a sociedade de classe média colocou em todo o
comportamento expressivo do cidadão normal e realista. Pode-se
dizer que alguns efeitos da propaganda fascista são obtidos
através desse procedimento invasivo. Os agitadores fascistas
são levados a sério porque eles se arriscam a passar por bobos.
As pessoas educadas costumam ter dificuldade
em entender os efeitos dos discursos hitlerianos porque eles soam
muito insinceros e inautênticos, ou, como diz a palavra alemã, verlogen.
Porém é enganoso pensar que as chamadas pessoas comuns tem uma
preferência inquestionável pelo genuíno e sincero, desprezando
o fraudulento. Hitler não foi apreciado porque lhe faltava a
bufonaria barata mas, ao contrário, por causa dela, de seus
falsos acentos e palhaçadas. Tudo isso foi visto e apreciado
como tal. Artistas realmente populares, como Girardi e seus
Fiakerlied, estabeleceram verdadeiro contato com suas audiências
e jamais deixaram de usar os "falsos acentos", que
tanto nos chocam. Manifestações similares são regularmente
encontradas nas pessoas que perdem suas inibições depois de
muito beberem. O sentimentalismo das pessoas comuns não é de
modo algum uma emoção primitiva e irrefletida. Ao contrário,
constitui uma imitação fingida e barata de sentimentos reais
que, na maior parte das vezes, não escapa à consciência e
carrega consigo uma ligeira autocomplacência.
A situação criada por essa exibição pode
ser chamada de ritual. O caráter fictício da oratória
propagandista, a distância entre a personalidade do locutor e o
conteúdo e caráter de seus proferimentos são próprios do
papel cerimonial por ele assumido e dele esperado. Entretanto tal
cerimônia é simplesmente a revelação simbólica de identidade
que ele verbaliza, uma identidade que os ouvintes sentem e
pensam, mas não podem expressar. Realmente o que eles querem que
ele faça não é convencê-los, nem, em essência, levá-los
ao frenesi mas, antes, ter suas próprias mentes reveladas. A
gratificação que eles extraem da propaganda consiste
provavelmente na demonstração dessa identidade, não importa o
quão longe ele vá, e, por isso, trata-se aqui de uma espécie
de redenção institucional de sua própria falta de
articulação, promovida através da verbosidade do comunicador.
O principal padrão do ritual propagandístico é esse ato de
revelação e o abandono temporário da seriedade responsável e
autocontrolada. Para ser exato, podemos ver esse ato de
identificação como um fenômeno de regressão coletiva.
Realmente não se trata de uma simples volta às emoções velhas
e primitivas mas de uma volta para uma atitude ritualística na
qual a expressão das emoções é sancionada por uma agência de
controle social. Observe-se neste contexto que um dos mais
perigosos e bem sucedidos agitadores da costa oeste repetidas
vezes encoraja seus ouvintes a se entregar a todo o tipo de
emoções, a liberar seus sentimentos, a berrar e cair em
prantos, insistindo em atacar os padrões de conduta baseados num
rígido autocontrole, conforme defendidos pelas entidades
religiosas estabelecidas e a tradição puritana em conjunto.
Este relaxamento dos controles internos, a
fusão dos impulsos individuais com o esquema ritual relaciona-se
intimamente com o enfraquecimento psicológico universal da
individualidade.
Genericamente uma teoria abrangente da
propaganda fascista seria equivalente pois ao deciframento
psicológico dos rituais mais ou menos rígidos realizados em
cada discurso fascista. Apenas breves referencias a algumas
características deste ritual nos é permitido fazer dentro do
escopo deste artigo.
1. Em primeiríssimo lugar existe a
surpreendente estereotipia do conjunto da propaganda fascista da
qual tivemos conhecimento. Não apenas cada locutor individual
repete sempre os mesmos padrões como locutores diferentes usam
os mesmo clichês. O principal, é claro, consiste na dicotomia
entre preto e branco, amigo e inimigo. A esterotipia se aplica
não só na difamação dos judeus ou de certas idéias
políticas, como exemplificam as denúncias do comunismo e do
capital bancário, mas também em matérias e atitudes, à
primeira vista, muito remotas. Nós fizemos uma lista dos
expedientes psicológicos mais típicos empregados por
praticamente todos os agitadores fascistas, que pode ser
condensada em não mais de trinta fórmulas. Várias delas foram
citadas acima, tais como a do lobo solitário, a idéia de
infatigabilidade, de inocência perseguida, do pequeno grande
homem, para não falar do elogio do movimento em si mesmo,
e por aí afora. Obviamente, a uniformidade desses expedientes
pode ser explicada em parte pela referência a uma fonte comum,
tal como o Mein Kampf, de Hitler. Também pode ser
explicada pelas vinculações organizacionais de todos esses
agitadores, como parece ser o caso destes da costa oeste
dos Estados Unidos. Todavia a razão precisa ser buscada em outra
parte, ao se notar que os agitadores de outros lugares do
país empregam as mesmas asserções; por exemplo, de que suas
vidas foram ameaçadas e de que seus ouvintes saberão quem é o
responsável , se a ameaça, jamais levada a cabo, vier a ser
concretizada. [Na verdade] acontece desses referenciais serem
padronizados por razões psicológicas. O possível seguidor do
fascismo anseia por sua rígida repetição da mesma forma como o
fanático por música popular [jitterbug] anseia pelos
modelos padronizados das canções de sucesso e fica furiosos se
as regras do jogo não são fielmente observadas. A aplicação
mecânica desses referenciais e modelos é um dos elementos
essenciais do ritual.
2. Não é acidental que se encontrem muitas pessoas com falsa fé religiosa entre os agitadores fascistas. Obviamente existe aí um aspecto sociológico, que será discutido mais tarde. Psicologicamente o que acontece é a colocação a serviço do ritualismo fascista dos [...] da velha religião, neutralizada e despida de qualquer conteúdo dogmático específico. A linguagem e as formas religiosas são usadas a fim de se dar a impressão de que se trata de um ritual sancionado e que, como tal, é realizado repetidas vezes por algum tipo de "comunidade".
3. O conteúdo religioso específico tanto quanto o
político é substituído por algo que, brevemente, pode ser
designado como o culto do existente. A atitude que Else Brunswik
chamou de "identificação com o status quo" se
relaciona intimamente com esse culto. Os expedientes indicados no
livro de McClung Lee sobre o Padre Coughlin, tais como a idéia
do vagão lotado ou o truque do testemunho, ao implicar o
apoio de pessoas famosas e bem-sucedidas, realmente não
passam de elementos de um padrão de conduta dotado de muito
maior alcance. Explicitamente seu significado, do
verdadeiro princípio a ser seguido, é o de que qualquer coisa
que existe e, assim, estabeleceu sua força, é também certa.
Ocorreu uma ou outra vez de um agitador da costa oeste recomendar
a seus ouvintes que seguissem o conselho de seus líderes sem
especificar em que tipo de líderes pensava. Despida de qualquer
idéia ou objetivo visível, o que é pois glorificado é a
própria liderança. O que mais do que qualquer outra coisa tende
a induzir o indivíduo a desistir de si mesmo e se juntar a
suposta onda do futuro é a conversão em fetiche da realidade e
das relações de poder estabelecidas.
4. Também é característica intrínseca do ritual
fascista a insinuação, só raramente seguida da
revelação dos fatos apontados. Novamente, o motivo racional
para essa tendência pode ser facilmente entendido: Quer a lei,
quer sejam pelo menos as convenções prevalecentes proíbem que
se façam declarações públicas de caráter pró-nazista ou
anti-semita. O orador que deseja difundir essas idéias tem de
recorrer a métodos mais indiretos. Parece provável porém que a
insinuação seja empregada e desfrutada como uma gratificação
per se. Quando o agitador diz, por exemplo: "as forças
obscuras, vocês sabem a quem estou me referindo", a
audiência é capaz de entender que essas observações se
dirigem contra os judeus. Desse modo, os ouvintes são tratados
como um grupo íntimo, que já sabe de tudo que o orador deseja
lhes contar e que concorda com ele antes mesmo que seja dada
qualquer explicação. A concordância de sentimentos e opiniões
entre o locutor e o ouvinte, acima mencionada, é estabelecida
pela insinuação, que, assim, serve para confirmar a identidade
entre o chefe e seus seguidores. Certamente, as implicações
psicológicas da insinuação vão muito além dessas
observações superficiais. Referimo-nos neste ponto ao papel que
as ilusões desempenham na interação entre consciente e
inconsciente, segundo Freud. A insinuação fascista se alimenta
desse papel.
5. A performance ritualística é, como tal, o
conteúdo último da propaganda fascista. A psicanálise mostrou
a relação do comportamento ritual com a neurose compulsiva; é
óbvio que o conhecido ritual fascista da revelação é um
substituto da gratificação sexual. Além disso, podemos nos
permitir alguma especulação com relação ao significado
simbólico específico do ritual fascista. Não estaríamos
exagerando ao interpretá-lo como uma oferta de sacrifício.
Partindo da premissa de que a esmagadora maioria das acusações
e histórias de atrocidades que abunda nos discursos desse tipo
de propaganda consiste de projeções dos desejos dos oradores e
de seus seguidores, segue-se que, embora muito escondido, o
significado do conjunto do ato simbólico de revelação
celebrado em cada discurso de propaganda fascista é o
assassinato sacrificial do inimigo escolhido. O desejo de morte
ritual é algo que está no coração do ritual de propaganda
fascista e anti-semita. Podemos corroborar isso com um
evidência tomada da psicopatologia cotidiana dessa propaganda. O
importante papel desempenhado pelo elemento religioso na
propaganda fascista norte-americana já foi mencionado. Um dos
padres fascistas das rádios da costa oeste disse em uma
transmissão: " Vocês não conseguem ver que, a menos que
exaltemos a santidades de nosso Deus, a menos que reconheçamos a
existência do céu e do inferno e a menos que proclamemos
o fato de que sem derramamento de sangue,
não há perdão dos pecados ? Vocês não conseguem ver que só
Cristo e Deus podem dominar, e que a Revolução acabará tirando
esta nação de nossas mãos?" A transformação da doutrina
cristã em slogan de violência política não pode ser mais crua
do que nesta passagem. A Idéia de um sacramento, "o
derramamento de sangue" do Cristo, é linearmente
interpretada em termos de um derramamento de sangue em geral,
tendo em vista um eventual levante político. O derramamento de
sangue real é defendido como uma necessidade porque o mundo
supostamente foi redimido pelo derramamento do sangue de Cristo.
Investe-se o assassinato com a aura de um sacramento. Do Cristo
sacrificado não há na propaganda fascista outro vestígio do
que "Juddeblut muss fliessen". A cruxificação
é transformada em símbolo do pogrom. Psicologicamente, a
propaganda fascista inteira é, pondo de maneira simples, o
sistema de tais símbolos.
Neste ponto, devemos prestar atenção para a
destrutividade como fundamento psicológico do espírito
fascista. Os programas são vagos e abstratos, as realizações,
espúrias e ilusórias, porque a promessa expressa pela oratória
fascista não é senão a própria destruição. Não é
acidental que todos os agitadores fascistas repitam que
catástrofes de algum tipo estão para acontecer. Embora eles
alertem sobre o perigo iminente, parece que eles e seus ouvintes
excitam-se com a idéia do destino inevitável, sem sequer
distinguir claramente entre a destruição de seus inimigos e a
sua. A propósito, observemos que esse comportamento mental pôde
ser claramente notado durante os primeiros anos do hitlerismo e
é de um profundo arcaísmo. Certa vez, um demagogo da costa
oeste disse: : "Eu desejo dizer para vocês, homens e
mulheres, que nós estamos vivendo em uma das mais aterradoras
época da história mundial. Também estamos vivendo na época
mais cheia de graça e beleza". É este o sonho do agitador:
a união de horror e beleza, o delírio do extermínio mascarado
de salvação. A esperança mais forte que pode existir para
efetivamente fazer frente a todo esse tipo de propaganda consiste
em apontar suas implicações auto-destrutivas. O desejo
psicológico de auto-aniquilação reproduz fielmente a estrutura
de um movimento políticos que, derradeiramente, transforma seus
seguidores em vítimas.
1.Veja Max Horkheimer, "Sociological Background
of the Psychoanalytic Approach", in Anti-semitism: A social
Disease, ed. Ernst Simmel (Nova York, 1946), a partir da p. 8.
2. Todas as citações são tomadas literalmente, sem modificações, de transcrições de primeira mão.